A importância da formação do imaginário

Minha proposta ao levar essa temática aos alunos é demonstrar que a imaginação (que uso no mesmo sentido de imaginário) é essencial à vida prática. Se hoje não vemos, na boa formação do imaginário, algo útil, dotado de aplicações técnicas, práticas, é porque, como demonstrarei, não se alcançou o pleno desenvolvimento humano. Abro mão de termos precisos e acadêmicos, aqui, em nome de uma didática mais clara e acessível a todos os presentes – e, por razões análogas, trabalharemos com uma vasta série de exemplos. Se quero provar a importância que tem um imaginário rico, colhamos, primeiro, os frutos de um imaginário capenga, limitado, fraco.

Um imaginário pobre, mal formado, limita a vida prática. Ao contrário do que pode parecer, um imaginário pobre não é vazio de conteúdo, mas repleto de ilusões. A título de exemplo, temos a clássica ilusão do bacharel; estuda-se para ir a faculdade, gradua-se para conseguir um emprego (de preferência, por concurso público), trabalha-se para se aposentar. Ora, esse roteiro é seguido por um número sem-fim de pobres coitados. Mas o que acontece se esse processo é interrompido? O que acontece ao indivíduo quando defrontado com problemas da vida prática (como o desemprego de diplomados ou a exploração de velhos incapazes)?

Sem a menor condição de sequer imaginar possibilidades outras de ação, o indivíduo que não desenvolveu seu imaginário é incapaz de perceber a realidade como ela se lhe apresenta. Ainda pior: ele nega a própria realidade, entra na crise de uma vida sem sentido. Observemos, desde já, que a boa formação do imaginário não passa, portanto, de alimentar a imaginação não com roteiros ou definições ilusórias, mas com elementos da vida prática, elementos com os quais o indivíduo irá, cedo ou tarde, se defrontar em sua vida. Hoje, as belas artes cumprem essa função. Aprende-se a sentir pela pintura, aprende-se a desejar pela dança, a temer pelo teatro, enfim, aprende-se, pela arte, a reconhecer sua condição humana.

Northrop Frye, em A Imaginação Educada, fornece a perfeita ilustração de como se dá a percepção da realidade frente ao desenvolvimento intelectual do homem. Imagine acordar em uma ilha deserta. No primeiro degrau desse desenvolvimento está a linguagem auto-perceptiva, quando o indivíduo toma consciência de si mesmo e daquilo que não é ele, daquilo no que ele está inserido. É o momento dos substantivos e dos adjetivos: vê-se a árvore robusta, o rochedo íngreme, a praia deserta etc.

Não tarda o indivíduo a ascender ao segundo degrau da percepção, coisa que mesmo os animais o fazem. A natureza (o ambiente no qual o indivíduo ou o animal se insere) não passa de um meio para que se supere suas necessidades, quero dizer, a objetificação da natureza é um processo natural e próprio de qualquer ser vivo. O homem vê, na ilha deserta na qual se encontra, um meio de subsistência; a árvore tem, no solo, também meios de subsistência; as aves, de modo semelhante, idem. Esse estágio da percepção é marcado pela ação, pelo desejo de transformação. O processamento linguístico, nesse ponto, condiz à linguagem de senso prático. O homem deseja colher seu alimento, construir seu abrigo, proteger-se das vicissitudes.

Apesar de o mundo construído e artificial se destacar quanto ao mundo natural, é nesse que vemos o auge do desenvolvimento dos animais. As formigas se organizam de modo mais eficaz que os homens, o joão-de-barro constrói sua casa de modo mais eficaz que o homem, na ilha deserta, pode construir seu abrigo, uma onça caça sua presa e dela se alimenta com muito mais facilidade que um homem buscando, sozinho e perdido, por carne. Essa insuficiência que o homem demonstra frente aos animais nos prova que ele ainda não alcançou seu pleno desenvolvimento, restando-lhe um último degrau na percepção da realidade: a imaginação.

É aqui que o homem alcança seu pleno desenvolvimento enquanto ser humano. Ao contrário das formigas, do joão-de-barro ou da onça mencionados, o homem é capaz de ver aquilo que ele fez e perceber que poderia tê-lo feito de forma distinta. O homem vê seu abrigo e o compara com o abrigo que outros animais naturalmente fazem. Mais que isso. O homem, percebendo aquilo que fez e aquilo que poderia ser feito, é capaz de identificar suas limitações. Nisso consiste a autoconsciência, não nas bobagens egocêntricas ou em todo falatório narcisista que se tem hoje em dia. A autoconsciência consiste em olhar para si mesmo e reconhecer suas limitações, em especial, em comparação com aquilo que transcende seus limites. Eu jamais seria ágil como um animal, por exemplo, e também não conseguiria ser dissimulado como Hamlet. Desenvolvendo essa percepção da realidade, o homem consegue, dentro de suas condições (agora reconhecidas), expandir as possibilidades de suas ações. Se antes, preso a percepção do senso prático, eu precisasse construir uma canoa, agora, plenamente desenvolvido, eu posso, antes, pensar as qualidades dessa embarcação (se ela me servirá num rio, se a usarei para voltar ao continente, se a utilizarei para pesca etc.). Agora eu posso agir com base na compreensão daquilo que pode ou não ser concretizado.

Preso às ilusões, ao senso prático, o homem vive somente como uma engrenagem no mundo cotidiano, apenas seguindo ordens, sejam essas dadas por seu superior, em seu trabalho, sejam dadas pelo senso comum (como no já dado exemplo da ilusão do bacharel). Apesar de tudo, viver desse modo, embora insuficiente, é cômodo. É conveniente viver como todos vivem, fazer o que todos fazem. Mas a insuficiência de uma vida limitada ao senso prático sempre se manifesta, hora ou outra o indivíduo se dará a uma crise existencial, a uma constante insegurança, a uma dúvida que não finda, faça o que faça. O imaginário pobre, limitado, desperta no indivíduo essa angústia, mesmo que ele não perceba a origem.

A medida que o homem consegue expandir e enriquecer seu imaginário com elementos da vida prática, essa angústia diminui. A partir de então, ele passa a ter modelos os mais diversos, que hão de ilustrar suas ações, seus limites, enfim, servir-lhe-ão como uma base para que busque aquilo que é bom e belo e repreenda aquilo que é mau e horrendo. Essa expansão do imaginário nada mais faz senão atribuir a velhos nomes novos significados. Por exemplo: se eu falar a palavra “barganha”, muitos pensarão numa relação de troca forçada, pois se lembrarão da barganha entre Dr. Estranho e Dormammu; outros pensarão numa relação livre, pois irão assimilar a palavra ao que dizia Adam Smith sobre o mercado; outros ainda podem pensar numa relação de troca em que ambas as partes buscam vantagem uma sobre a outra, como Fausto ao barganhar com o Diabo. Ou mesmo quanto ao exemplo da canoa; uma canoa para cruzar o rio apresenta um formato, uma canoa para cruzar o oceano, outro.

Percebamos que o melhor título para a palestra seria “A importância da reforma do imaginário”, em vez de se destacar a sua formação, já que estamos partindo de imagens e exemplos que estão ao nosso alcance. Forma-se o imaginário de crianças. Quanto a nós, o melhor é que o reformemos, expandirmo-lo. A mitologia, antes, cumpria esse papel, para além das questões religiosas. Ora, um adulto cultua Apolo ou Ártemis por os ter como objetos de devoção, mas, nenhum adulto em sã consciência defende a ideia de que um punhado de penas colado com cera de vela é capaz de me auxiliar a levantar voo. O mito de Ícaro não serve aos adultos, mas às crianças. É muito mais fácil a uma criança perceber que se deve obedecer aos mais velhos e evitar excessos quando se conta a aventura de Ícaro e seu pai do que a fazer entender as mesmas coisas, mas fundamentando a moral no bom uso da razão e lhe explicando o imperativo categórico, que seja. O mesmo vale ao que chamamos de “lenda” com certo menosprezo.

Não sou o maior especialista em mitologia nativa, mas, todos conhecemos o mito do boto cor-de-rosa. Ninguém que tenha o mínimo de noção vai aceitar a ideia de um golfinho fluvial é capaz de se transmutar em homem apenas para cumprir seu ímpeto sexual com moças desprevenidas. Mas, percebamos: quando se narra essa história às menininhas, elas aprendem o valor da castidade e os perigos da devassidão e promiscuidade. Aos meninos, a história tem efeito parecido, mas é ainda mais marcante, afinal, um menino que se dá à lascívia se equipara ao boto – age de forma monstruosa, diabólica, pois é um monstro um ser que se transmuta a fim de propagar seus vícios, é uma aberração fruto do sobrenatural (e como Deus nada criou que se transfigure dessa forma, só pode ser coisa do tinhoso). Esses exemplos já nos bastam.

À medida que as relações humanas se complexificam, desenvolver o imaginário comum se torna uma forma de desenvolver uma cosmovisão e o senso de pertencimento de um povo. Todo povo tem sua cosmovisão, formulada a partir de uma tradição comum, e, dentro dessa tradição, há também aquilo que une cada indivíduo – o mito fundador. Os romanos se identificavam como romanos por reconhecerem que todos ali possuíam algo em comum com os seis reis que descendiam do primeiro rei, que fora abandonado às margens do Rio Tibre e amamentado por uma loba, além de ter matado seu próprio irmão. Interessa saber se essa história é real? Não, pois, de todo modo, é por compartilhar desse enredo que os romanos mantinham seu senso de pertencimento. Mesma coisa com os portugueses. Ora, tem algum efeito prático saber se, de fato, Cristo apareceu e abençoou a batalha de D. Afonso Henriques contra os muçulmanos? É claro que não, o que interessa é saber que essas histórias forjam a identidade de um povo. Noutras palavras, o imaginário comum, alimentado (em partes) pela mesma fonte, propicia aos indivíduos possibilidades as mesmas.

Surge um problema nisso. A partir da Idade Moderna, a humanidade passa a supervalorizar a percepção de senso prático. O pleno desenvolvimento intelectual clama pelo homem dada a sua natureza. Se antes era o pensamento mitológico (no sentido que vimos há pouco e em linhas gerais) que conduzia o homem ao degrau da imaginação, agora, são as artes. O modelo para que o homem reconheça sua condição passa a ser encontrado na literatura, nas artes plásticas, no teatro etc. E todas essas coisas são intencionalmente forjadas. Um povo mantido na vida prática invariavelmente, como eu disse, vai entrar em crise existencial. As artes lhe socorrerão, na medida do que lhe for possível. Mas uma arte torpe conduzirá o indivíduo a ações torpes. Foi assim que as lendas sobre o elo perdido (um animal que estaria supostamente entre o homem e o macaco, na linha evolutiva da espécie) facilitaram a partilha da África e motivaram o sequestro de membros de tribos africanas, transformando homens em objetos de exposição em zoológicos e circos. Foi assim que a lenda do El Dorado fez uma série de espanhóis virem às Américas caçar ouro e prata no meio do mato, a qualquer custo. É assim que a lenda de um futuro melhor garante poder e cacife político a qualquer paspalho canalha, psicopata e imbecil.

Hoje se vive (e se insiste em viver) de modo deliberadamente preso, amarrado às questões práticas, sem se interpretar absolutamente nada que se manifeste quase que de maneira óbvia frente aos nossos olhos. Insiste-se em se manter todos quanto forem possíveis atravancados ao processamento linguístico da realidade mais fundamental de todos, capando, inclusive, o ímpeto de transformação do mundo ao redor, reduzindo o homem a algo inferior a um animal. Busquemos desenvolver a autoconsciência, só assim se pode tomar a noção do que se pode ou não fazer. Enfim, ascendamos à imaginação.

*Transcrição revista da palestra ministrada na Fundação Instituto de Educação de Barueri, dia 8 de outubro de 2022


Barueri, 10/10/2022


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