Cavalgando o javali

A música Holy Diver, composta por Ronnie James Dio, possui uma letra tão marcante quanto emblemática: explicitamente, fala sobre um mergulhador sagrado, sobre esconder-se no Sol, cavalgar um tigre… É comum que aqueles que a conheçam pensem ser apenas mais uma letra sobre a luta do Bem contra o Mal, recheada de símbolos e referências comuns às músicas do gênero, mas está um pouco para além disso. Holy Diver é, em suma, uma das mais maravilhosas canções de esperança para – parafraseando aquele sobre quem irei ancorar minha reflexão – os aristocratas da alma e um manual de sobrevivência para qualquer brasileiro que minimamente compreenda sua posição no país. Só é preciso substituir o tigre da música pelo javali.

Não é segredo a ninguém que Dio (como outros grandes compositores do heavy metal clássico) entendia profundamente o ocultismo, o esoterismo e toda sorte de assuntos revelados somente aos que foram iniciados em algum clube que orbite essa temática. A canção ora em mira é quase uma síntese da obra Ride the Tiger, de Julius Evola. O tal mergulhador sagrado é um homem íntegro e tradicional1, voltado para as questões perenes, para o transcendental, e que compreende estar submerso no “mar da meia noite”, um lugar misterioso, insondável, amedrontador, onde céu e mar se confundem e, acima de tudo, um lugar onde luz alguma se manifesta. A canção chama esse homem para buscar efetivamente aquilo que está acima de si e do mar no qual se encontra: a verdade latente entre as “mentiras de veludo”. Para tanto, é necessário que ele cavalgue o tigre.

A imagem de cavalgar o tigre tem origem em um ditado do extremo oriente que diz, numa tradução mais compreensível, “quem monta no tigre tem medo de desmontar”2. Uma vez que se monte no tigre, a consequência de descer dele é, naturalmente, a morte. Símbolos como esse se manifestam noutras culturas: na mitologia indo-ariana (muito bem vista por aqueles que estudam esoterismo, aliás), Mitra agarrou um touro pelos chifres e esse parte em uma corrida desenfreada. Mitra tranquilamente se manteve agarrado ao animal até que, exausto, o touro é morto; na tradição hindu, Krishna enfrenta a cobra gigante que envenenava um rio. Ele salta sobre a cabeça da serpente, dança e a domina, forçando-a a abandonar o local; Guaracy, na mitologia indígena, precisa montar uma onça furiosa até que a fera se acalme e aceite sua presença, reconhecendo a força do herói; mesmo Hércules só é capaz de vencer o leão de Nemeia com suas mãos desnudas, sozinho.

Prolonguei-me nos exemplos para dizer que, além de um símbolo tradicional, impor-se a uma força irascível é um símbolo natural e, desse modo, aberto a uma série de interpretações. Podemos partir dessa imagem para discutir sobre a já citada luta entre o bem e o mal, ou o conflito entre a razão e as paixões, ou a vida interior ou o que trago neste texto, sobre o momento histórico e as situações coletivas.

É evidente que vivemos o fim de uma era – e não o digo em tom alarmista –, vivemos a Idade de Ferro, a kali-yuga; paira sobre nossa existência um sentimento de dissolução, de que tudo ao nosso redor está ruindo. Percebamos, os fenômenos comuns a sociedades que ruíram3 já se manifestam no cotidiano:

  1. A interdependência dos sistemas econômicos, políticos e sociais apresenta tamanho grau de complexidade que, na mera ameaça de colapso de um desses sistemas, os outros dois também entram em crise;
  2. Como na queda do Império Romano, na Revolução Francesa ou na Revolução Bolchevique, a concentração da riqueza de uma nação em uma elite cada vez mais limitada fomenta um nível de desigualdade cada vez maior e força a população mais pobre a exigir mais recursos dos frágeis sistemas já citados;
  3. A crescente dependência de tecnologias específicas, de modo que a falha de um recurso desses pode ser literalmente fatal4.

Cito ainda um quarto ponto: a degeneração moral5. Degeneração moral, rendição às paixões mais grotescas, comportamentos e costumes (se assim posso chamar) típicos não só de uma sociedade que beira o seu fim, mas de quadrúpedes em eterno cio. Absolutamente todos os fatores comuns a sociedades que estão em seu fim já estão presentes. Aliás, resta só um único grande fator, mas que em não muito tempo – como já previu Albert Pike – far-se-á presente: uma grande guerra.

Por vivermos a kali-yuga é que se faz necessária a imagem do “cavalgar o tigre”. Veja: é muito difícil extrair algo de positivo em se opondo ao movimento de nosso tempo. Vejamos quão ridículos são os católicos tradicionalistas que emulam a imagem de pessoas boas e eruditas, mas não passam de paspalhos arrogantes e, não incomum, canalhas de tom maior. Quão ridículos não são os que se dizem conservadores, mas que mal sabem o que estão a conservar? Evoco esses casos para que não façamos uma análise aprofundada do “red pill” – já sofrem o suficiente por amores não correspondidos, deixemo-los assim. E pior, se já é difícil se opor ao nosso tempo, o que dirá daqueles que a ele cedem? Não preciso detalhar os fenômenos de nossa era, apenas os citemos brevemente: o feminismo, a new left, os movimentos de perversão sexual, o comunismo, o eurasianismo, a Teologia da Libertação. Incontáveis, porém, todos análogos, todos eles estão intimamente ligados às paixões mais carnais, aos impulsos mais baixos do ser humano6. Lavar as mãos, alienar-se e apenas dar as costas ao problema também não cabe aqui, pois isso seria resignar-se, abrir mão da responsabilidade pelo futuro (que melhore ou piore ainda mais), mas sem deixar de ser responsável por essa decisão. A omissão é tão catastrófica quanto a cessão imediata ou a oposição combativa.

Ora, se não nos é possível nos opormos ao presente momento, não nos é desejável o seguir e não podemos ficar alheios, que nos resta? Cavalgar o tigre. Não podemos enfrentar os processos de nosso mundo, mas podemos – e até devemos – nos deixar conduzir por esse movimento, sem, no entanto, ceder a ele. Quero dizer, devemos acompanhar de perto o que acontece ao nosso redor, mantendo-nos firmes em nossas posições, “de pé num mundo de ruínas”7, sem ultrapassar ou nos deixar sermos ultrapassados por esse tigre, que, por não poder atacar aqueles que estão sobre ele, cedo ou tarde se cansará e parará de correr. E é nesse momento em que devem agir os aristocratas da alma8, a elite intelectual, aqueles que de fato podem mudar o rumo de nosso tempo – seja conduzindo o tigre noutra direção, seja lhe dando um fim.

É claro, tudo isso é muito arriscado, mas, voltemos à canção de Dio. É o intelectual o mergulhador santo que, embora inserido no mundo em ruínas, é a verdadeira estrela escondida e, tão logo, não precisa – nem deve – se afixar ao medo da ação e do fato de que é ele quem deve se lançar a cavalgar o tigre, com toda sua certeza, afirmando aquilo que ele é9. Lembremo-nos dos conselhos do padre Sertillanges10. O intelectual não é um homem isolado, deslocado de seu tempo e inábil às ações cotidianas: é um homem que, por sua vocação, age, mas de forma concreta, não apenas meditando, também conduzindo, tomando a frente. É somente ele capaz de compreender o nosso tempo e suas vicissitudes, além das nefastas consequências da oposição combativa, da alienação proposital e da cessão apaixonada ao que vivemos. É ele capaz de ver que, em meio à degeneração cultural, às ruínas do Ocidente, a todos os fenômenos próprios da kali-yuga, a tudo de ruim que se manifesta, subjaz algo de positivo, algo de belo, enfim, subjaz a verdade que muitos negligenciam11.

Capa do álbum Holy Diver (1983)

É tão certo o dever do intelectual nesse cenário quanto é o fato de que, como um animal raivoso, os fenômenos de nosso tempo cessarão sua fúria. Embora esses pareçam ter forças intermináveis e pareçam estar a triunfar sobre o mundo inteiro, não possuem vínculo algum com princípios superiores (pelo contrário, aliás, já que, como dito, relacionam-se intimamente com o que há de mais baixo e sensível no homem) e, portanto, sua prevalência é puramente temporal. Aquele, por outro lado, por dever sua vocação a Deus e a Ele dedicar seu ofício, ancora a si mesmo, por inteiro, no único princípio superior que realmente importa e faz ecoar, logo, suas ações pela eternidade12, algo muito superior às ações de um tigre em fúria. Essa minha exposição, aliás, pode ser ilustrada pela capa do álbum Holy Diver (que, é claro, contém a música a qual volto a todo instante neste texto). Nela, vemos um animal feroz (o tigre, o espírito do tempo), emergindo de uma terra hostil (os fenômenos de nosso tempo) e usando de suas correntes (as paixões humanas) para submergir no mar da meia noite um padre (que representa a casta sacerdotal13, o aristocrata da alma, o intelectual que, por definição, está relacionado a Deus), que afunda mais por seu desespero que pelas correntes, já arrebentadas, e por manter seu foco na criatura bestial, não na situação. Ao fundo e acima de todos os personagens, meio oculta pelas nuvens (circunstâncias cotidianas, naturais e aleatórias, cuja solução está fora do nosso alcance), está a Lua cheia (o princípio superior, a verdade que, embora oculta, está sempre presente) iluminando o cenário. Por fim, ao lado direito, o Sol nasce, vindo do Oriente14, ainda oculto, mas já resplandecendo sua luz, pronta para afugentar a criatura notívaga (e trazendo consigo a esperança ora ausente).

Mas eu disse que a criatura, para fazer mais sentido para a realidade brasileira, haveria de ser um javali. Não por acaso. O javali, essa criatura grotesca, de bizarra aparência e um grunhido desgraçado, não é nativo de nossa fauna. Ele é simplesmente uma praga, cuja agressividade e adaptabilidade, aliadas à ausência de predadores naturais, fazem-no figurar em uma lista com as cem piores espécies exóticas invasoras do mundo15. Essa besta suína tem em seu encalço um rastro de destruição: devasta plantações, espalha doenças, cruza com outros animais, enfim, representa uma séria ameaça a todo ecossistema em que se enfia. Ora, não é precisamente o que nos ocorre? Comunismo, feminismo, os movimentos de perversão sexual e a comunidade red pill, todos esses fenômenos contemporâneos são apenas as consequências de ideias que nos são estranhas (e, assim como o javali, boa parte oriunda da Eurásia). Essas ideias se infiltraram em nossa cultura e ainda a parasitam, de forma tão íntima que não é possível as ignorar. Também não é possível militarmos por ideias diametralmente opostas a essas, que de pouco em pouco se enraízam e se transformam em estritas crenças nos corações e mentes mais jovens. Ceder e apoiar esses movimentos sequer deve ser mencionado como opção. Pois bem, nosso destino é evidente: cavalguemos nesse javali.

A imagem pode ser engraçada, mas a realidade é tão séria quanto a necessidade de uma elite intelectual que entenda o que eu digo. Já é tarde para se expor a ilogicidade16 desses movimentos hostis, pois isso é algo que se faz ainda quando esses são movimentos embrionários, restritos à intelligentsia (que no Brasil compõe a fauna de animais simbólicos evocados nesse texto e é sumariamente uma burra17). Resta-nos agora administrar essa situação até que, por forças naturais, a besta se canse, digo, esses movimentos se enfraqueçam e, então, abatamos o animal. É claro, podemos acelerar esse processo trabalhando localmente, formando pequenas comunidades de estudos e análises, divulgando a alta cultura18, retirando esse véu de inacessibilidade que parece encobrir os assuntos mais elevados. Shakespeare trata da alma humana em suas peças e não há dificuldade de se as ler; Beethoven faz o mesmo com suas composições; Michelangelo, em suas obras, idem. Mas as grandes massas parecem desconhecer a facilidade de se contemplar e compreender essa produção e a razão, para mim, é clara: a cultura de baixo ventre, promovida pelos desastrosos movimentos contemporâneos, embota o cérebro, destrói o corpo e corrompe a alma. Digo-o por experiência: já trabalhei a alta cultura com alunos carentes de escolas estaduais periféricas e essa constatação é manifesta. Uma vez que o indivíduo tenha essa noção (de que não há tanta dificuldade quanto julgam em se ascender à alta cultura), dificilmente ele se manterá preso a sua incultura inicial. Pouco a pouco, as paixões individuais passam a ser melhor administradas pelos próprios indivíduos e, em breve, esses abandonam os movimentos que os mantinham presos, enfraquecendo essa besta maldita. Não é difícil ter esperanças quanto a rapidez com que isso acontecerá – como o mergulhador santo da análise acima, já podemos vislumbrar o nascer do Sol –, mas urge que tomemos a responsabilidade sobre nossos tempos.

Talvez, o último desafio que resta e que ainda alimenta nosso javali é aquele que chancela a penetração dos ideais mais baixos na nossa cultura, aquele que permite – e estimula – a invasão vertical dos bárbaros19, aquele que está sempre abaixo do poder que pode exercer a elite intelectual: o poder estatal. Sem precisar me prolongar muito mais, isso nos deve servir para alimentar nossa esperança, afinal, o poder estatal é puramente temporal. Por ora, dediquemo-nos a cavalgar o javali: economizemos e reunamos nossa energia para que, no momento certo e da forma certa, ajamos, sem nos deixar esmorecer pelo aparente triunfo do Mal. Insisto: cavalgar o javali não implica em apenas suportar com paciência o fim desse tempo, mas o fazer enquanto, também com paciência, lutamos para enfraquecer esse monstro, sem simplesmente nos opormos em vã negação. No momento certo e com a graça de Deus, saberemos como matar esse animal.

1“Tradicional” em um sentido bem específico, que não nos compete discutir agora.

2He who rides a tiger is afraid to dismount”.

3Ver The End Is Always Near, de Dan Carlin.

4Sou obrigado a citar parte de meus alunos, cujo cérebro deu lugar ao uso imoderado de ferramentas com I.A.. Em uma escola com quase 200 alunos, aqueles que não dependem da tecnologia e podem, ao menos, escrever um parágrafo compreensível são tão poucos que seu destaque é evidente.

5Ver A História do Declínio e Queda do Império Romano, de Edward Gibbon. Embora o viés iluminista da obra seja claro, assim como um relógio quebrado acerta duas vezes ao dia, Gibbon tem um bom ponto acerca da degeneração moral romana, em especial, quando expõe a inclinação apaixonada dos romanos durante o declínio do Império.

6Não pretendo elaborar neste texto, mas percebamos que mesmo os três pontos supracitados sobre o fim de uma sociedade, no fim das contas, se resumem a isso: cessão às paixões mais animais.

7“Deixemos os homens do nosso tempo […] com as suas ‘verdades’ e preocupemo-nos só com uma coisa: manter-nos de pé num mundo de ruínas” – EVOLA, J. Revolta Contra o Mundo Moderno. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1989. p. 470

8Como ficará claro, minha posição quanto àquele que ocupa esse lugar não é estritamente igual a de Evola, mas uso o mesmo termo ainda assim. Futuramente, trabalharei numa exposição exclusiva de minha ideia a esse respeito.

9Holy diver / You’re the star of the masquerade / No need to look so afraid. Jump, jump / Jump on the tiger […]

10Ver o maravilhoso A vida intelectual, de A.-G. Sertillanges. Também interessante mencionar o livro A vida da mente, de J. V. Schall.

11[…] You can feel his heart but you know he’s mean / Some light can never be seen

12Como posto por A. Comte, “a vida dos vivos é regida por filósofos mortos”.

13Embora eu tenha dito que a música é uma síntese da obra de Evola (e mantenho a afirmação), a forma como R. J. Dio compreende o “aristocrata da alma” parece mais próxima a minha compreensão. Para Evola, esse aristocrata nasce na casta guerreira – portanto, jamais seria um padre. A divergência entre R. Guénon e J. Evola sobre as relações entre a “Autoridade Espiritual” e o “Poder Temporal” suscita uma discussão sem fim entre os tradicionalistas.

14Mais explícito que isso, só se houvesse uma cruz na ilustração.

15Ver a cartilha O javali asselvajado: Norma e Medidas de Controle, do IBAMA.

16Expor a “hipocrisia da esquerda”, como a direita adora – ou só sabe – fazer, sem nunca se dar conta de que, resumindo, as contradições da cultura revolucionária são condições sine qua non de sua manifestação.

17Uso “intelligentsia” em oposição à “elite intelectual”. A intelligentsia brasileira é uma classe social, um grupinho fechado de gente estúpida e mau caráter que, embebida em filodoxia e em relativismo, arroga a alcunha de intelectual. A elite intelectual, ao contrário, é de fato formada por intelectuais: estudiosos que reconhecem sua vocação e seguem (ou se dedicam a tentar seguir), em suma, os valiosos conselhos do padre Sertillanges.

18Não no sentido de uma elite econômica, é claro, mas em oposição à incultura, à cultura de baixo ventre, ou, facilitando a compreensão, à cultura de massas.

19Não por acaso, esse agente é o mesmo que dificulta a caça aos javalis de verdade. Curioso, não?


Barueri, 22/01/2025


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