Educação tradicional X Burrice contemporânea

Certa vez, em meu ofício, foi-me pedida a redação de um texto sobre a “necessidade de alteração das práticas educacionais”. Dado o contexto de então, pressupunha-se que a educação tradicional já não tinha espaço e que essa deveria dar lugar à “escola nova”, dotada de metodologias nunca antes utilizadas, métodos de ensino incrivelmente inovadores e todos esses jargões que o professorado já deve estar cansado de ouvir. Pois bem, tenho em mãos essa redação, que data dos idos de 2019, e me proponho uma reelaboração do texto, assumindo a mesma pergunta que fiz àquela época: existe, hoje, a necessidade de se renovar as práticas educacionais?

Já há muito se ouve que a sala de aula parou no tempo, em especial, no século XIX. Concordo em partes – antes houvesse mesmo parado. Não há muito mistério no processo de ensino: alguém disposto a aprender toma contato com o objeto a ser conhecido por intermédio de algo ou alguém dotado de condições suficientes para essa realização. Aqui já se mostra um detalhe que, quando desconsiderado, fomenta a velha máxima de que o ensino tradicional não funciona. Como eu disse, o processo de ensino pressupõe alguém disposto a aprender. Essa é a primeira condição. Não se pode, jamais, ensinar algo a quem não se dispõe a aprender. É possível adestrar, condicionar, fazer com que o indivíduo, tal qual um cão, responda a um estímulo de forma mecânica, porém, imediata, dando a ilusão de que o pobre rebento aprendeu algo. Assim fui condicionado a resolver equações químicas, por exemplo, coisa que ainda hoje não posso dizer que sei como fazer.

Ao contrário do que se imagina, a educação não é um direito, mas um dever. Um dever do indivíduo para consigo próprio. Incomodando-se com sua ignorância, busca o cidadão o conhecimento. Não entremos no mérito dele encontrar um bom ou um mau professor, atentemo-nos ao fato de que, sóbrio quanto a sua condição, ele, o aluno, busca aprender tão somente se ele se dispuser ao conhecimento. Se ele vai estudar com um professor ou com um livro, se ele vai assistir a videoaulas ou frequentar um reforço escolar é problema dele. Mesmo nesses quatro casos existe alguém disposto a aprender, que, aos poucos, toma contato com o objeto a ser conhecido (a matemática, a química, a literatura) por intermédio de algo (um livro, um vídeo) ou alguém (um professor).

Qual é, então, o papel da metodologia empregada pelo professor em sala de aula? Bom, se o objetivo das partes (professor e aluno) é o conhecimento, a verdade, a metodologia é quase que indiferente. O professor pode trabalhar de modo que julgue o mais adequado, mesmo que, posteriormente, o aluno revele não apreender o que é exposto, resultando na obrigação de alteração metodológica por parte do professor, ou seja, a metodologia é mero detalhe quando o foco é a verdade em si mesma.

O cenário muda em se tratando de uma escola, onde o objetivo é outro. Se numa escola privada, o objetivo, é claro, é o lucro da empresa. Se numa escola pública, o objetivo é o capital político. Agora sim saberemos responder àquela pergunta inicial. Sim, há a necessidade de se alterar os métodos de ensino, pelo simples fato de que o objetivo já não é o mesmo que há tempos. Antes, buscava-se a verdade, hoje, o lucro. Antes, buscava-se o desenvolvimento intelectual, hoje, a propaganda.

Embora isso me seja evidente, custei a entender. Percebam, não condeno uma empresa buscar lucro ou um político fazer propaganda. O problema está (e desde Sócrates deveríamos saber disso) em toda retórica utilizada, todo esforço empregado para se mudar o ônus da questão, não por vias válidas, mas com mentiras, com ilusões e, pior, com a manutenção da burrice coletiva.

Um professor não deve se esforçar para chamar a atenção de seus alunos quanto à disciplina. Eles que deveriam voltar seus esforços para o conteúdo que, seria de se supor, eles próprios querem aprender. De todo modo, percebamos que nisso reside o valor da educação tradicional. Não me refiro, claro, às palmatórias ou aos castigos humilhantes que, embora façam falta algumas vezes, são condenáveis. Mas, refiro-me, àquilo que os pedagogos não assumem: o professor é o portador do conhecimento. Ao menos em sala de aula e quanto àquilo que lá profere. Cabe a ele expor o conteúdo. Mais que isso. Ciente de seu intelecto e da ignorância de seus discentes, ele tem justamente a obrigação de voltar ao ponto que lhe pareça mais fundamental, para, a partir daí, conduzir os alunos. É uma obrigação moral árdua o suficiente para ser digna daqueles que para a educação têm vocação. Por isso é tão difícil ser professor. É preciso, antes, estar inclinado a isso. É desse chamado, aliás, que decorre o respeito exigido no trato com um professor. Seu trabalho é a razão de sua vida.

Agora, quando o que está presente em sala de aula é um funcionário e sua matéria-prima, a metodologia empregada se torna a esteira do produto final. Seja qual for a escola, seu produto é um aluno aprovado. Não interessa o que aprendeu, muito menos do que o aluno, ao final do ano, é capaz. Um aluno aprovado vale votos na escola pública e marketing na escola privada. Para que o jovem aluno seja arrastado até o último dia letivo, é necessário que o professor transforme seu trabalho em festa. Avalia-se o aluno de formas tantas que seria surpreendente alguém apresentar rendimento insuficiente. E mesmo que obtenha esse mérito, ainda terá o direito a tantas recuperações quantas lhes forem necessárias para ser aprovado (na rede particular é ainda mais fácil: basta pagar). Outro dia fui orientado a não falar “avaliação” ou “recuperação”, mas, sim, “aferição” e “superação”. O que me parece é que o mais burro dos alunos não é mais capaz de recuperar as rédeas de sua educação, mas, apenas, de superar os limites do inacreditável e mostrar, ao professor e ao mundo, que a imbecilidade é seu atributo mais valioso. Na sala de aula, hoje, o professor faz de tudo, menos dar aula.

Assumamos de uma vez: não é que a educação tradicional tenha falhado, é que a burrice coletiva é mais lucrativa. É preciso um grande intelectual para ensinar pequenos filósofos; um grande cientista para ensinar pequenos biólogos. E tudo isso custa muito. Em contrapartida, qualquer Zé Mané semianalfabeto é capaz de passar adiante sua ignorância. De mulas assim o mercado está cheio. A tendência é aumentar.


Barueri, 27/06/2022


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