Introdução
Ter algum preconceito se tornou sinônimo de ser uma pessoa racista, sexista ou retrógrada, entre uma série de outras qualidades que são, se não repulsivas, indesejáveis. O sonho do homem moderno é se tornar um indivíduo livre de todo e qualquer preconceito, questionando tudo que lhe é dado e se tornando um livre-pensador. Em seu livro Em Defesa do Preconceito: A necessidade de ter ideias preconcebidas, Theodore Dalrymple busca a real razão pela qual se anseia por tanta liberdade e originalidade: o desejo de se fazer o que bem entender quando se bem entender, afugentando qualquer autoridade, destruindo deveres morais e convenções sociais e até negando os próprios fatos.
Perdendo esses reguladores de comportamento e estimulando a ausência de autocontrole, apenas a lei poderá conter os conflitos resultantes, o que abre espaço para uma ditadura absurdamente autoritária.
Para analisar a obra de Dalrymple, enuncio aqui, além de algumas de suas críticas a Stuart Mill, as relações que ele apresenta entre o preconceito e a história, a violência, a educação e a relação que dá origem a todo raciocínio que se segue: a chamada metacensura, censura de segundo patamar, ou, enfim, o preconceito contra o preconceito.
Preconceito contra o preconceito
Embora o significado, de acordo com o dicionário Oxford, do termo “preconceito” seja apenas “um julgamento prévio”, uma concepção estabelecida antes de uma reflexão, de viés favorável ou não, o arquétipo de preconceito que se tem diz respeito à raça. Não se pode dizer quando essa associação foi formada e Dalrymple mostra que isso contribuiu para a criação de um cenário no qual enunciar um sentimento virtuoso seja tomado como a própria virtude. Como consequência disso, em suas palavras, “tudo bem se alguém for um crápula inescrupuloso, pois desde que expresse as palavras certas, isso é, não demonstre ter preconceito, tudo estará bem” (p. 18).
É possível argumentar que o preconceito racial teve papel fundamental entre os maiores massacres da história, inferindo a ideia de que, se em um local não houver preconceito, lá não haverá genocídio ou massacre algum. Porém, um preconceito generalizado, ainda que seja causa necessária para um genocídio, não é suficiente para sua coordenação: “se o preconceito fosse condição necessária para o genocídio, então ao curar a humanidade de seus preconceitos, veríamos também a cura para o genocídio” (p. 18). Como livrar a humanidade de preconceitos é impossível (e, assim, um objetivo inalcançável), isso não é sequer desejável. Ainda em relação a esse ponto, se tomarmos como fato aquilo que as pessoas dizem sobre si mesmas, nunca vivemos um período tão livre de preconceitos. E mesmo assim, tomando os exemplos do próprio livro, pessoas negras não podem andar em segurança por Moscou, nem hindus em Bangladesh ou no Paquistão.
A seguir, Dalrymple diferencia aquele que tem preconceito daquele que não o tem. O homem ciente de seus preconceitos é capaz de os colocar sob um constante reexame, sabe que seus julgamentos são limitados e passíveis de dúvida; ele sabe que é suscetível aos erros. Já o homem que se diz livre de preconceitos “é alguém aterrorizado pela ideia de ser visto, em primeiro lugar, como intolerante e, em segundo, como alguém tão mentalmente incapaz que não pode pensar por si próprio” (p. 20). Esse homem se recusa a ceder àquilo que já se tem por certo, já que, em sua mente, isso seria ceder ao preconceito (e, por conseguinte, torná-lo intolerante e desprezível), portanto, ele busca alcançar o ponto cartesiano indubitável do qual ele poderá, sozinho e livre de preconceitos, construir a sua opinião.
O problema desse ceticismo metafísico é que, mesmo entre os céticos mais radicais, varia de acordo com o assunto. “São poucos os que se mostrarão céticos a ponto de duvidar que o Sol surja amanhã, muito embora eles tenham certa dificuldade na hora de oferecer evidências sólidas que sustentem a teoria heliocêntrica (ou qualquer outra) do sistema solar” (p.22), ou ainda tão raro quanto, são poucos aqueles que, dizendo-se livre de preconceitos, podem duvidar que o presente texto fora escrito por um ser humano1.
Preconceito na historiografia
Se a História busca retratar o que aconteceu, ela deveria narrar todos os fatos, mas é necessário sempre um corte, uma forma de seleção, senão a História seria uma reprodução de si mesma (com o exemplo do autor: “um mapa do mundo que reproduzisse todos os detalhes do mundo, no mesmo tamanho e proporção do mundo, não seria mais um mapa do mundo, mas um modelo em paralelo ou uma reprodução do mundo” – p. 25). Essa seleção exige um princípio subjacente e não aleatório. O problema se dá quando essa seleção impõe à narrativa uma teleologia que se baseia na leitura retroativa das insatisfações presentes, ou seja, quando se busca encontrar na história justificativas imanentes para os problemas de hoje (um ótimo exemplo para isso é a historiografia marxista).
A historiografia liberal (esquerdista) busca valorizar os desastres e subestimar as realizações pois “se a história é, de fato, nada mais que o registro de extremas perversidades, então nada temos a aprender, exceto que nós, pessoas de indiscutível boa vontade, devemos fazer as coisas de forma diferente no futuro – fazer tudo diferente” (p. 29), observando a conduta moral das pessoas do passado como mera hipocrisia. Por fim, com a ausência de uma concepção religiosa de pecado original, “por meio do qual a imperfectibilidade do homem pudesse ser aceita, mas sem absolvê-lo da necessidade de individualmente se esforçar para ser virtuoso, tanto uma perfeita consistência moral quanto um completo amoralismo se tornam o padrão de julgamento” (p. 29). Seja qual for o padrão adotado, ele nos libertará do peso do passado, que deve ser evitado a todo custo.
Preconceito na educação
Se uma pessoa se sente moralmente obrigada a se distanciar de todo e qualquer preconceito, ela se dá o dever de não os incitar na mente dos mais jovens. É por isso que se investe nas crianças, cada vez mais novas, autoridade para que possam administrar suas próprias vidas, livre dos preconceitos dos mais velhos. Dalrymple se vale do seu idioma para exemplificar isso, mas podemos traçar um paralelo com o Brasil. O termo “mestre” ou “professor” tem sido substituído por “facilitador” ou “tutor”, para fomentar, de acordo com as próprias escolas, a autonomia das crianças. Como resultado dessa promoção da autonomia e individualidade, temos uma série de crianças sem o menor autocontrole.
Embora o ambiente escolar promova uma pedagogia não preconceituosa, o fracasso da educação é consequência de pais preguiçosos e sentimentais que atuam de modo fortemente permissivo, principalmente naquilo que é ruim para as crianças, o que é estabelecido antes da idade escolar. A obesidade infantil, por exemplo, começa muito antes da chamada “primeira idade da razão”. Uma criança que seja estimulada a expor suas preferências (que, aliás, serão sempre atendidas), aprenderá que a vida deve ser regida pelos seus caprichos e aversões. Livre do preconceito de seus pais, essa criança “se tornará escrava de seus próprios preconceitos” (p. 34).
Preconceito em família
O hábito nada mais é que uma forma de preconceito comportamental. Era um hábito muito comum uma família se sentar à mesa e compartilhar a refeição, um ritual amplamente visto como normal e irrefletido. Graças às críticas racionalistas, esse hábito tem sido minado das famílias britânicas. Por experiência própria, Dalrymple mostra que, nas casas de bairros pobres que visitou, a refeição feita em comum entre os familiares ou mesmo atividades culinárias, quaisquer que fossem, eram praticamente inexistentes. Ele vai além: muitos dos detentos com quem teve contato em seu trabalho sequer sabiam o que era participar de uma refeição em família.
Um fato que o autor observa e que podemos ampliar para o Brasil é o de que “a rua se tornou a sala de jantar […], e isso ajuda a explicar o motivo pelo qual as ruas se encontram tão entulhadas de lixo, principalmente de detritos advindos dos alimentos das cadeias de fast food” (p. 36).
Para suprimir o preconceito a favor das refeições em família, primeiramente tivemos a crítica contra a própria família. Especialmente na literatura, por mais de um século, vimos a infelicidade da vida familiar, guerrilhas domésticas que culminam em morte ou divórcio. Assim como paradigmas científicos, um preconceito não some, ele é sempre substituído por outro. Depois do preconceito contra a família, veio o preconceito contra crianças nascidas de forma ilegítima. Um exemplo real e doloroso que Dalrymple nos dá é o de uma mulher internada em um asilo de lunáticos – um manicômio – por setenta anos. Sua loucura? Ter dado à luz um filho ilegítimo todos esses anos antes.
“Derrubar um preconceito não significa destruir o preconceito enquanto tal” (p. 39), mas inculcar um outro. O preconceito contra filhos ilegítimos deu lugar, sob um exercício retórico e intelectualmente exibicionista, ao preconceito que diz que não há absolutamente nada errado em ter um filho fora do casamento. Em um relatório publicado pela Fundação Joseph Rowntree, foram entrevistadas 41 adolescentes que decidiram ter um bebê. Embora não conste no relatório, a maior parte dessas adolescentes fora vítima de um crime sexual – a pedofilia.
Com um vocabulário pobre e uma sintaxe abominável (sic.), tais adolescentes evidenciavam sua autoridade social, um preconceito que tinham não por uma reflexão pessoal, mas “uma aceitação irrefletida de hábitos sociais em meio aos quais nasceram” (p.30). Essas adolescentes interpretam as relações humanas como uma luta de poder, da qual, dadas as suas condições, elas sairão perdedoras. Além disso, em conformidade com ambiente no qual cresceram, será difícil aceitar que o mundo não está tão interessado nelas quanto as pessoas que compreendem seu círculo familiar; nas palavras de uma das adolescentes, se “não me levanto para os meus pais, então por que devo me levantar para eles [os professores quando entram em sala]?” (p.41). Pela ausência dos preconceitos corretos e a ideia de autoridade social, para a adolescente entrevistada aquilo que é apropriado para seus pais será apropriado, descontando-se a obediência, a todos os demais, invariavelmente. Nesse caso, o “preconceito cego a favor da autoridade constituída foi substituído por outro preconceito cego, o qual vê em qualquer autoridade, exceto aquela que emana da própria pessoa, algo inerentemente ilegítimo” (p. 42).
Link para a parte 2
1Ler um texto pressupõe um que um humano alfabetizado o escreveu. Essa pressuposição é, em si mesma, um preconceito.
DALRYMPLE, T. Em Defesa do Preconceito: A necessidade de ter ideias preconcebidas. 1ª edição. São Paulo: É Realizações, 2015.
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